Jurista e filósofo, Almeida falou sobre racismo estrutural x racismo institucional, precarização do trabalho e como vem lidando com as críticas por ter aceitado fazer parte do comitê externo criado pelo Carrefour após assassinato de João Alberto

“Um homem branco não tem que dar satisfação sobre a sua vida profissional. Homem preto tem”, disse Silvio Almeida em entrevista, no último dia 14. O filósofo, advogado e uma das maiores referências na luta contra o racismo esteve em Porto Alegre, junto com a advogada, executiva e gerente de novos negócios no Google Lisiane Lemos, para participar do evento “O impacto da diversidade racial para inovação nas estruturas”. O debate foi uma realização da ODABÁ – Associação de Afroempreendedorismo, em parceria com o Nau Live Spaces e a causa da Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil – Núcleo Porto Alegre. Na ocasião, Almeida e Lemos compartilharam seus conhecimentos e discutiram melhores práticas antirracistas nos processos de inovação das estruturas.

Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, Almeida publicou, no ano passado, o livro Racismo estrutural (Editora Polén). No último mês, vem recebendo críticas por ter aceitado fazer parte de um comitê externo independente que foi criado pela rede de supermercados Carrefour, após o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por dois seguranças brancos em uma loja de Porto Alegre. O jurista ressalta que é preciso aproveitar certas brechas para impor certas condições e utilizar-se de todos os meios possíveis no combate ao racismo.

Confira a entrevista na íntegra:

Pergunta – Começamos perguntando sobre a questão do comitê do Carrefour. Você vem recebendo uma série de críticas por integrar este comitê, inclusive você já deu uma explicação sobre isso na sua conta no Twitter. Como você vem lidando com essas críticas?

Resposta – Eu venho militando com certa tranquilidade, porque eu acho que eu estou fazendo algo que eu me propus a fazer desde que eu entendi que a minha vida intelectual não estava separada da minha política. Significa dizer que a primeira coisa é salvar a vida das pessoas. Eu tenho a plena convicção de que há uma distinção, e isso eu coloco até no meu livro, entre racismo estrutural e racismo institucional. O racismo estrutural revela o fato de que a própria reprodução das estruturas sociais, e falo aqui da economia, capitalista; do Estado; da política – das estruturas partidárias, inclusive; do direito; e estou falando também do processo de constituição subjetiva de cada indivíduo, estão tramadas pelos racismo. O racismo, portanto, faz parte desta trama que nos constitui enquanto sociedade estruturalmente. Agora, dentro das instituições, existem também os indivíduos que decidem dentro dessas estruturas e também no interior das instituições. As instituições são atravessadas pelo racismo, mas não quer dizer que nós não possamos disputar e fazer movimentos contrários para salvar a vida das pessoas. E, para mim, seria muita irresponsabilidade apostar, por exemplo, na via unicamente jurídica, sabendo que o direito ainda reproduz essas estruturas. Então, o que eu vou fazer? Vou entrar com uma ação judicial, sabendo como funciona o nosso poder judiciário, composto por maioria de pessoas brancas, de homens brancos e que tem laços também com os poderes, com o poder econômico? Eu vou apostar todas as minhas fichas nisso? O racismo é relação de poder. Deve-se, portanto, aproveitar certas brechas para impor certas condições, sustentados, obviamente, pela força das ruas, sustentado pela força dos movimentos sociais. Então, veja só o que acontece: houve a chance de discutir algo que toca a estrutura. Sabe o que é, por exemplo? A terceirização, que é um dos pontos fundamentais na precarização do trabalho. E a precarização do trabalho é um dos pontos fundamentais que estabelece a condição das pessoas negras dentro da lógica do trabalho no capitalismo. Então, se é possível tocar neste ponto, é irresponsabilidade minha não fazer isso. Não há incoerência. No meu livro, eu escrevo justamente isso: “Enfim, sem nada fazer, toda instituição irá se tornar uma correia de transmissão de privilégios e violências racistas e sexistas. De tal modo que, se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas. É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem: a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas […]”, promover o status para ascensão. O que não podemos ter é analfabetismo ideológico. Muitos brancos falam: “o racismo é estrutural, então não posso fazer nada, sou racista assim mesmo”. Não é nada disso. A gente tem que ter responsabilidade. Nenhum ato, nem de um indivíduo, nem de uma instituição,  pode acabar com o racismo que é parte das estruturas sociais do mundo contemporâneo. Mas isso não significa que nós não devemos lutar contra o racismo em todas as fronteiras que forem abertas para nós. Então, este é o ponto. Tenho militado com muita tranquilidade, mas, obviamente, muito preocupado, com os conflitos principalmente. Mas enfim, sigo no caminho certo, pronto para acertar e pronto para arcar, também, com todas as consequências daquilo que eu me proponho a fazer, que é responsabilidade do meu fardo histórico.

P – Aproveitando que você tocou no ponto da terceirização, o Carrefour anunciou o fim dela nos seus serviços de segurança, uma decisão tomada a partir de sugestão do Comitê…

R – Segundo o que foi proposto pelo Comitê, e isso é público, aliás um dos pontos fundamentais era deixar público, para que todo mundo soubesse o que estava acontecendo, porque as pessoas precisam entender o que significa isso. A proposta foi que a terceirização fosse eliminada para que houvesse a responsabilização direta da empresa e não fosse possível atribuir a terceiros. Agora, não tem mais atalho, não tem mais desvio. Isso é importantíssimo. E é isso que estão reivindicando os movimentos. Uma coisa importante neste sentido: o movimento negro não é único. O movimento negro são vários, o movimento negro são os negros em movimento. Então, o compromisso que a empresa tornou público, e que depois será cobrado pela sociedade, é que não haverá mais terceirização. Mas é importante ressaltar que eu não falo pela empresa.

P – Além do ponto da responsabilização, eliminar a terceirização, priorizando funcionários próprios pode, também, impactar na mudança na cultura organizacional desta empresa?

R – A gente espera que impacte, né? Porque a gente sabe que um dos fatores que vai degradando as relações de trabalho é a precarização. E a terceirização é uma das formas fundamentais da precarização do trabalho. Ou seja, mudar pagamentos de baixos salários, não colocar o sujeito para ficar trabalhando em vários lugares ao mesmo tempo, que a fiscalização não seja precária em relação à condição desses trabalhadores. É isso que a gente espera. Mas, mais do que isso: é fundamental que haja uma mudança no que se considera ser segurança. Segurança é ficar perseguindo negros dentro de lojas? E não é garantia de que não vá acontecer, pois o racismo é estrutural. O racismo não é só institucional. A gente não pode fazer essa confusão. Só tem um jeito de combater o racismo estrutural: mudando a sociedade completamente. Mudando completamente as regras do jogo. E isso tem nome: revolução. Mas isso é outra coisa. Agora, o racismo institucional, sabe como se combate? Com ação afirmativa. Mas isso não acaba. Por quê? Porque o racismo vai se infiltrando, vai se reproduzindo. 

P – Se adaptando às novas estruturas…

R – Claro! Ele vai se adaptando às novas formas de organizações culturais. Por isso eu repito: você acha que um juiz, no tribunal, obrigaria a acabar com a terceirização? Sabe por que não obrigaria? Porque a terceirização é legal. O Supremo Tribunal Federal disse que pode fazer terceirização. Ou seja, o STF diz o seguinte: a terceirização é absolutamente compatível com a Constituição e, portanto, a precarização do trabalho é algo que não nos importa. Qual o jeito de acabar com isso? Política. Ou seja, a frase de Malcolm X se faz necessária: “tem que se combater o racismo por todos os meios necessários”. Porque às vezes, sabe o que acontece? O cachimbo acaba entortando a boca da pessoa. Se a gente não tem flexibilidade tática, a gente não chega daqui até ali. Por isso, os nossos ancestrais lutaram por todos os meios necessários. Eles lutaram capoeira, eles fizeram desfile de escola de samba, eles criaram quilombo. Por isso que o orixá vem armado. Até Oxalá vem com seu cajado. Ou seja, a gente não pode se dar ao luxo de ser ingênuo. De ficar acreditando nas estruturas jurídicas, partidárias, porque isso nos leva para o buraco. Mas se for necessário usar, tem que usar. Então, por todos os meios necessários, tem que salvar a vida das pessoas. A gente não pode chegar na revolução de outubro, sem passar por maio. Enquanto essas pessoas vão morrendo, morrendo, morrendo, nós vamos ficar assistindo? Eu falei: eu não vou fazer isso. Eu não sou irresponsável. Se eu tenho o poder de ajudar, se eu tenho o poder de salvar vidas, se eu tenho poder de ajudar, no meio de uma pandemia, uma empresa multinacional contratar 20 mil pessoas negras, eu vou fazer. Porque fica muito fácil ficar com a vida mansa, seria tranquilo, poderia ficar escrevendo meus livros, todo mundo lendo, me aplaudindo. Para mim, tranquilo. Agora, você está no meio da torção dialética, usando o termo marxista. Você está no meio da briga, da confusão, e precisa tomar uma decisão. Isso é outra coisa. Para salvar a vida das pessoas? Faço. 

P – Silvio, ainda dentro deste tema, tivemos uma grande reivindicação, aqui em Porto Alegre, sobre a morte de uma líder comunitária, Jane Beatriz Machado da Silva, de 60 anos, mulher negra, conhecida na comunidade Cruzeiro, em meio a uma ação policial. O que é necessário para transformar a mentalidade racista das forças de segurança públicas e privadas? É possível reeducar policiais e vigilantes racistas com anos de práticas truculentas?

R – Existe uma corrente de transmissão de segurança pública e segurança privada. Como é a segurança pública? Matar preto, bater em preto, ficar vigiando preto. Essa mesma estrutura de segurança pública vai, depois, ser colonizada pela segurança privada. Inclusive com os mesmo autores: policiais, ex-policiais, etc. Para mim, não existe possibilidade de se pensar segurança sem pensar na segurança das pessoas. Pensando no Brasil, para mim, as lojas, o comércio, tinham que ter é assistente social, em vez de segurança. Gente do serviço social que acolhesse as pessoas lá dentro. É preciso mudar a lógica, o modo de pensar, o modo de organização. Eu não vejo saída se ficarmos discutindo o que são as relações mercantis no Brasil sob a ótica de segurança. Você percebe que tem uma relação direta, aqui no Brasil, entre terror e circulação mercantil. Circulação mercantil, no Brasil, se faz com sangue dos outros. 

P – E isso, diretamente relacionado com a propriedade privada e, consequentemente, com o capitalismo. 

R – Lógico! O capitalismo brasileiro é feito de sangue. Dos outros. 

P – Isso que você falou, sobre a assistência social, é muito interessante, pois o que se percebe, inclusive na questão dos seguranças seguindo pessoas negras dentro dos supermercados…

R – É negro. Batendo em pobre. Gente que rouba chocolate. Pode um negócio desses? Acontece no Carrefour e acontece em outras lojas também. É um problema sistêmico. Por isso, eu digo aqui. A base da minha atuação, especificamente, é fornecer um parâmetro que possa estimular reivindicações, mudanças tal como as que vão ocorrer aqui. É elevar o patamar da luta política contra o racismo institucional. Eu quero evidenciar uma coisa: eu tenho muito respeito por todas as pessoas, ainda que divergentes, porque companheiros meus são e estão lutando e se posicionado neste caso. Quero reiterar meu respeito, minha consideração por todas as pessoas que estão envolvidas neste caso. Eu as respeito. E continuarei respeitando. Porque não é fácil esta luta. Inclusive, pessoas com quem eu militei pelas cotas, que eu militei contra o genocídio, que estão do meu lado. Eu respeito todas as formas de luta. Não falo por ninguém, a não por mim, enquanto ser humano e enquanto homem. Ser humano, é isso que quero ser. Por isso que eu tomo decisões, por isso que eu tomo a torção dialética: porque eu quero ser ser humano. Uma coisa que às vezes é negado para a gente. Às vezes não, né?

P – Frequentemente.

R – Frequentemente, né? Fosse um homem branco que estivesse na posição em que muitos de nós está, isso aqui não era uma questão. Porque um homem branco não tem, por exemplo, que dar satisfação sobre a sua vida profissional. Homem preto tem. Eu estou observando isso também. Está sendo muito pedagógico este momento.

P – Sobre salvar vidas. Falamos muito na luta de combate ao racismo sobre dar dignidade para pessoas negras. Podemos inverter este viés, pensando nas pessoas negras em espaço de poder neste combate?

R – Pode. Podemos sempre tentar melhorar a vida das pessoas. O que a gente pode fazer, a gente faz. Aliás, se um sujeito resolve se candidatar para um cargo público, ele está entrando em um estrutura de poder, branca, liberal e burguesa, tentando o quê? A reforma. Agora, dignidade, para todos os seres humanos, é fora desta vida miserável que as estruturas sociais e econômicas nos levam. É a única possibilidade. Porque fora disso que nós fazemos, é tentar salvar uma vida, duas vidas, outra vida. Este é o nosso horizonte. 

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Leia a thread na íntegra no perfil de Silvio Almeida

Segue um fio sobre o “Comitê” externo e independente do caso Carrefour 👇🏿— Silvio Almeida (@silviolual) November 27, 2020